Recebo regularmente excelentes matérias sobre a história e personalidades de Alagoas, publicadas pelo incansável Edberto Ticianeli, admirável cidadão da “Terra dos Marechais” PhD que, em matéria de Cultura naquelas plagas. Com a devida vênia – como dizem os advogados – reproduzo aqui mais uma de suas maravilhosas publicações vindas do seu blog História de Alagoas. Com os devidos e justificados créditos conheçam a história do::
“Dr. Jacarandá,
o alagoano que inspirou o Zé Carioca
Publicado em 11 de janeiro de 2021 por Ticianeli em Cultura, Personalidades // 7 comentários
Segundo Graciliano Ramos (Vivente das Alagoas), por causa
da seca de 1877, ele e a família deixaram Olhos d’Água do Acioli (uma
vila de Palmeira dos Índios, atual Igaci) e foram morar nos “arrozais de
Anadia” (antiga área de São Miguel dos Campos).
Dr. Jacarandá em 1919
Em entrevista
ao Malho de 19 de julho de 1930, Manuel Vicente Alves disse que aos 22 anos “se
especializou nas casas de pasto, a cantar o menu
aos fregueses”, período em se manifestaram nele “os primeiros pendores para
a tribuna”.
Relatou que tinha a
pretensão de atravessar o Atlântico e para
isso foi trabalhar em um navio do Lloyd como moço
de bordo. Viajou até Manaus e voltou a Pernambuco, onde resolveu conhecer o Rio de Janeiro.
Chegou à capital
federal em 1904 e trabalhou como quitandeiro, peixeiro, apanhador de papeis velhos,
estivador e criado de uma porção de
famílias.
“Vivi ignorado até há pouco tempo, quando então os
cariocas descobriram o meu talento e começaram a me chamar
de doutor”, explicou a um repórter.
Passou a exercer a
advocacia sem possuir formação institucional em Direito.
Era um rábula.
O jornalista quis
saber se tinha escola superior. Respondeu rápido:
— Uê!… Então para
ser doutor é preciso estudar alguma
coisa?”.
Em outra
entrevista, na década de 1920, perguntado como começou a advogar, respondeu:
— Eu fui procurado
por um homem que não sabia como receber a quantia de 700$000. Eu achei que aquilo devia ser fácil e,
atendendo ao legítimo direito do meu primeiro constituinte, tratei da causa e
consegui vencer”.
Sobre sua
especialidade, esclareceu que era o despejo. E
completou:
— Eu esqueci de
apresentar há pouco, que essa minha primeira causa ainda não acabou. Porque o devedor tem pago aos poucos e ainda ontem o meu constituinte
recebeu ‘alguma coisa’”.
Ficou famoso
como defensor dos pobres diante da Justiça.
Inicialmente seu “escritório” era a Praça Onze e
seu birô uma pasta cheia de papeis. Era descrito como
um preto alto, imponente, de voz poderosa.
Passou a ser
conhecido como Dr. Jacarandá por sempre
afirmar para os seus clientes:
— Confie em mim,
pois sou igual ao jacarandá, um pau para toda obra”.
Outra versão conta
que o apelido surgiu por ser advogado de porta de cadeia,
normalmente construída usando tábuas de jacarandá.
Escritório do Doutor
Jacarandá
Consolidou sua fama
na década de 20, quando caiu nas graças do marechal Fontoura,
que assumiu a chefia de Polícia da capital federal e o ajudava na libertação de alguns presos.
Também foi
proprietário de um botequim na
esquina das ruas Evaristo da Veiga com Senador Dantas.
Em “Vivente das Alagoas”, Graciliano Ramos descreve
um encontro que teve com ele nas ruas do Rio de Janeiro em um dia muito quente:
“O Dr. Jacarandá resplandecia, leve e retinto, como
se estivesse engraxado de novo. O pixaim branco realçava
na treva da nuca, valorizava o chapéu velho; as
abas do fraque, impulsadas por energias intensas, agitavam-se, remedando bandeiras de uma bela cor preta amarelada, com manchas claras; os bolsos
enchumavam-se, provavelmente de símbolos escritos; e
uma rosa triunfava na lapela, vermelha e grande.
Ligeiro como um redemoinho, o homem atravessou a
avenida, sumiu-se na multidão suada, fatigada”.
Dr. Jacarandá não gostava
de falar de sua vida e fugia das perguntas dizendo que em breve lançaria um
livro com sua história.
Em 1930,
perguntaram a ele o que pensava do amor.
— Amor… amor…
homem, amor na minha opinião é o superlativo natural da natureza!
— O senhor já amou alguma vez?
— Os grandes
homens não amam. Além disso, eu considero o amor um assunto natural. E para o público só posso falar
sobre assuntos artificiais.
Disse também que
gostava muito de literatura, mas desde que as
histórias não fossem muito picantes.
— Quais os escritores de sua preferência?
— Eu divido os
escritores em duas categorias: os que já li e os que tenho vontade de ler.
Dos primeiros nada posso dizer por que não me lembro;
quanto aos outros não sei.
Quando assunto
era política, falava sem parar. O repórter quis saber então
o que era a política para ele.
— Política é
uma questão ética, quando os princípios da parte dos contemporâneos passados procuravam fazer solidar
o regime da religião católica romana, procuravam
matar, expulsar os mais antigos, para os mais novos que viessem nascendo e já
acreditando na religião católica.
Expressava-se com
alguma dificuldade, expondo seus estudos limitados — não passou do Primário. Quando se dirigia a um juiz o
tratava como “sinhô dotô meretismo”.
Reclamava do andamento dos processos perguntando pela “marcha dos papé”. Dizia-se que ele “impretava hábis córpis”, garantia “manitenção de possia” e requeria “sortura”.
Não ligava para
as chacotas, demonstrando confiar nos seus “estudos”.
Era audacioso quando se relacionava com os servidores
das varas, cartórios e tabelionatos. Exibia em um grande anel de pedra vermelha, anunciando seu “doutorado”.
Conhecia e citava
de cor os artigos do Código Penal, além
de pronunciar algumas frases em latim.
Assim conseguiu inúmeras vitórias no Tribunal.
Dr. Jacarandá sendo
entrevistado pelo repórter de O Malho no Centro Alagoano para a edição de 19 de
julho de 1930
Em 1930 foi despejado do quarto de uma casa onde pagava o
aluguel fazendo a limpeza. Por favor do coronel Amilcar, passou a viver miseravelmente no Centro Alagoano, na Rua do Núncio, nº 33, esquina com a
da Constituição. Dormia sobre as cadeiras e ganhava uns trocados fazendo biscates para advogados, mas “sem abandonar seu ar
de superioridade”.
Na mesma saleta
onde dormia, estabeleceu seu “Escritório”, com
tabuleta na porta. A OAB não gostou
e impediu o seu funcionamento naquele recinto.
Continuou atendendo
seus clientes numa mesa de bar próximo
ao fórum.
Considerando-se popular o suficiente para pleitear um mandato político, resolveu se candidatar em todas as
eleições a partir da década de 1920. Somente não pleiteou a presidência da
República. Nunca obteve mais que três dezenas de votos.
Prometia que, se “inleito”, garantir os “direitu das sinhora meretrizias”.
Seus discursos faziam a festa das plateias, principalmente dos estudantes.
Sua plataforma,
devidamente impressa após ser revisada em uma gráfica, propagandeava o
seguinte: “Pleitearei pelos direitos das senhoras meretrizes que
não poderão sofrer coação da sua liberdade por
andarem na rua ou entrarem em botequim de dia
ou de noite”.
Eram reivindicações
que poderiam lhe garantir alguns votos, mas o outro ponto do programa, com
certeza não lhe deu voto algum: “Pleitearei que todas as delegacias deverão
ter uma sala de reserva para a comodidade de pessoas idôneas que ali vão acusadas de
terem cometido crimes”.
Certa feita,
acompanhava uma sessão do Conselho Municipal e
ouvindo o amigo Maurício de Lacerda discursar
da bancada da imprensa sobre alguma injustiça da época, se dirigiu publicamente
a ele pedindo orientação de como proceder para reparar o
esbulho que tinha sido vítima, se referindo aos poucos votos recebidos.
— Só há um recurso, colega —, respondeu bem sério o
palestrante.
— Qual é?
— É você requerer
que todos os “votos em branco” sejam contados em seu favor…
Na mesma hora
o Dr. Jacarandá redigiu uma petição e a apresentou
ao presidente do poder municipal, o velho J. J. Seabra, que
recebeu o documento e deu um sorriso de compaixão.
Charge em O Malho de 1924
Nas ruas,
cumprimentava todo mundo, mas não gostava das peças que lhe
pregavam os moleques. Algumas vezes teve que pedir a proteção de um delegado amigo.
Mas aceitava de bom
grado participar das troças carnavalescas.
Em uma delas desfilou no carro alegórico dos
estudantes da Escola de Engenharia, sendo
escolhido “paraninfo perpétuo” da turma.
Em 26 de janeiro de
1917, o Jornal do Brasil noticiou que o Dr. Jacarandá tinha sido violentamente agredido por um grupo de carpinteiros que estava numa mercearia da Rua do Lavradio, onde ele morava.
Apanhou porque
foi vaiado e protestou. Foi salvo por um guarda civil, que prendeu os agressores.
Outro episódio, de
abril de 1919, revela a vida polêmica e
os detalhes do seu texto.
Ele moveu queixa crime contra um vizinho, o tintureiro Armando Bastos: “eu não me conformando, como não
conformo com as in Juria, que me foram, impurtado, pelo supplicado eu me,
fadamentado no título X 1 e capítulo único, das calumnias e das injuria do
código penal, art. 315, Vim ireispeitosamente, requerre A. V. Ex. abertura de
inquerito policial, e audigne de mandar, intimar supplicado para, vinho perante
as autoridade, competente, provar a injuria, etc…”.
No dia da audiência, quando foi convidado a se manifestar, disse:
“Fui insurtado e quero o arreparo das léses. Ou cadeia pro acusado ou a retratição…”. O
acusado revelou que não tinha nenhuma intenção de ofendê-lo.
— Ah! intão o
sinhô deséste da intenção das injuria? A léses pervê o caso. Não há incongruença entre a
queixa dada e a retratição da curpa. Eu como
outo só ejije agora o termo de desistença”, se pronunciou
o acusador, conhecedor das leis.
Revista Careta de 20 de março de 1926
Alguns doutores não gostavam de vê-lo ostentando o mesmo
título sem diploma. Um deles chegou a processá-lo.
Defendeu-se dizendo que era um apelido que
recebera e que não tinha controle sobre isso.
Acometido de
um mal súbito em maio de 1948, foi socorrido e
internado no Hospital de Pronto Socorro. Não
mais voltou para seu pequeno e pobre quarto.
Sabendo da doença
do seu pai, José Januário Alves, comerciante
em São Miguel dos Campos (alguns jornais registraram
São José dos Campos), imediatamente viajou para o Rio de Janeiro e acompanhou-o até a sua
morte em 19 de julho de 1948.
Foto do Dr. Jacarandá
de 1948, um pouco antes do seu falecimento
Estava internado
no Hospital Carlos Chagas, em Marechal Hermes. Foi
sepultado no cemitério de Ricardo de Albuquerque.
Além desse filho,
há registros da existência de uma sobrinha.
Quando adoeceu,
morava na Rua do Lavradio, nº 73 e meses
antes, em fevereiro, foi agredido pelos vizinhos com cabos de vassoura acusado
de não pagar sua parte do consumo de energia elétrica do
prédio onde morava, de propriedade da Prefeitura. Os agressores foram presos.
Dias depois, o agredido apresentou documentos comprovando que pagava suas contas em dia.
Em 2017, era um dos
personagens do musical “Negros e Judeus na Praça Onze”,
apresentado no Rio de Janeiro.
Zé Carioca
A criação do
personagem Zé Carioca pela equipe do
desenhista Walt Disney, que ocorreu há quase
80 anos, fazia parte de uma estratégia política do
governo norte-americana de estabelecer boas relações com
os países latino-americanos.
Vivia-se o início
da Segunda Guerra Mundial e os EUA queriam
garantir alianças militares no continente e assim fechar as
portas para os alemães.
Essa intenção ficou
evidente no lançamento do primeiro filme do Zé Carioca em 1942. A fala inicial do personagem
animado foi: “Alô amigos, a vocês uma querida
saudação, um gostoso aperto de mão. Amigos fazem assim,
alô amigos“.
O artista J. Carlos
foi quem propôs o papagaio para representar o Brasil
A inspiração para o
personagem surgiu em 1941 durante um jantar, no Copacabana
Palace, que reuniu o grupo Walt Disney e alguns convidados, entre
estes o famoso desenhista brasileiro J. Carlos.
O carioca José Carlos de Brito e Cunha foi chargista,
ilustrador e designer gráfico. Também foi escultor, autor de teatro de revista
e letrista de samba. É considerado um dos maiores
representantes do estilo art déco no
design gráfico brasileiro.
No jantar, J. Carlos ofereceu a Walt Disney o desenho de um papagaio abraçando o Pato Donald. Disney imediatamente percebeu que era
aquele o personagem que estava procurando para seu projeto.
Conheceu também os
trabalhos de J. Carlos e o convidou para ir
morar nos EUA. Pretendia tê-lo em sua equipe para desenvolvedor do personagem animado que
representaria o Brasil. J. Carlos recusou o convite.
Foi a partir
do papagaio proposto por ele que surgiu o Zé Carioca. Não se conhece o destino dado ao desenho
original e nem o que dele foi aproveitado no personagem.
Mas sabe-se que
para compô-lo, se tomou emprestado do alagoano Dr.
Jacarandá, o fraque, o chapéu, o
guarda-chuva e o charuto.
Sobre a origem
do jeito malandro do Zé Carioca, há três versões.
Teria vindo do
músico paulista, José Patrocínio de Oliveira, o
Zezinho, amigo de Carmem Miranda e que tocava
banjo e bandolim no Bando da Lua. Foi
ele quem foi para os EUA e lá dublou o
personagem no filme “Saludo Amigos” (Alô, amigos, no Brasil).
Zé Carioca de boné e
camiseta
Outra versão aponta
como origem o jeito folgadão do sambista Paulo da Portela,
que Disney conheceu ao visitar a quadra daquela Escola de
Samba.
Alguns identificam
que a malandragem do Zé Carioca veio dos dois.
A influência
do Dr. Jacarandá nas vestimentas do Zé Carioca
sobreviveu até os anos 60, quando o papagaio deixou
de lado o paletó, gravata, chapéu-palheta e
charuto, passando a utilizar roupas tropicais como
uma camiseta.
Com as mudanças na
equipe Disney, em maio de 1983, a camiseta foi
utilizada pela última vez no desenho para gibi Pedrão, o pintor. Zé Carioca voltava a vestir o
velho paletó e o chapéu-palheta.
A partir de janeiro
de 1992, Zé Carioca novamente cedeu à moda do momento e
apareceu com boné, camisas estampadas e
tênis, inicialmente nas capas dos gibis e, depois de dez edições, também nos
desenhos internos. A partir de então abandonou de vez sua relação imagética com
o Dr. Jacarandá.”