quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

“Na vida a gente ama vinte vezes; uma por inexperiência e dezenove por castigo"

 Dos inúmeros nomes consorciados na música brasileira, dois não passam despercebidos. Antonio Maria e Haroldo Lobo. Ambos pernambucanos, ambos amantes da noite, ambos boêmios, ambos poetas. Sobre o primeiro:

Antônio Maria de Araújo Moraes (PE, 17.03.1921 - RJ, 15.10.1964) morreu aos 43 anos. Ingressou adolescente na Rádio Clube de Pernambuco como locutor e apresentador de programas musicais.

Antônio Maria viajou para o Rio de Janeiro em 1940, tendo ido trabalhar como locutor esportivo na Rádio Ipanema. Contudo, devido ao seu estilo peculiar de irradiar os jogos, logo acabou sendo dispensado do emprego. Improvisava sambas com Fernando Lobo e frequentava os bares cariocas. Como ele não conseguia um emprego no Rio, retornou ao Recife, indo trabalhar em jornais, produzir músicas para publicidade sendo, inclusive, locutor esportivo.











Em 1944, Antônio Maria se casou com Mariinha Gonçalves Ferreira, a irmã do seu amigo Hugo Peixa, e foi morar em Fortaleza. Nesta cidade, ele trabalhou, por quase um ano, na Rádio Clube do Ceará, graças aos esforços do seu amigo Fernando Lobo. No entanto, retornaria logo ao Rio de Janeiro, passando a exercer o cargo de diretor de produção da Rádio Tupi, além de publicar crônicas no periódico O Jornal.

Atuou também como jornalista no Diário Carioca, assinando a coluna A noite é grande; na Revista Manchete, com a coluna Pernoite, e nos jornais O Globo e Última Hora. Por trabalhar no horário noturno, muitos diziam que ele era um repórter das noites cariocas.

Por ser um indivíduo muito talentoso, Antônio Maria conseguiu ser admitido, como diretor de produção, na primeira televisão brasileira - a TV Tupi - no dia 20 de janeiro de 1951. Nessa televisão, ele exerceu inúmeras atividades: atuou na locução esportiva, nos jingles, nos roteiros dos espetáculos, no humorismo e na crônica.

As primeiras manifestações do compositor que estouraria em 1952. Em verdade, o ano de 1952 foi o ano bom de sua vida - por sinal  belamente biografada pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, quando uma música sua, gravada por uma cantora inteiramente desconhecida, de voz grave e sem grande extensão vocal chamada Nora Ney, repercutiria em todo o país, lançando cantora e compositor. Era "Ninguém me ama", considerado até hoje um clássico da chamada música de fossa e de dor-de-cotovelo, protótipo do samba-canção.

Mas, "Ninguém me ama", de Antônio Maria, acrescenta outro nobre personagem à história da MPB - um personagem com descendência igualmente importante -, o amigo e conterrâneo com quem ele assinou a composição, poeta, compositor e jornalista Fernando Lobo (PE, 26.07.1915 - RJ, 22.12.1996), pai de Edu Lobo, faleceu com 81 anos. Em "Ninguém me ama", Maria e Fernando atingiram um dos pontos mais amargos e pungentes da poética musicada:

Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso / E hoje descrente de tudo me resta o cansaço / Cansaço da vida, cansaço de mim / Velhice chegando, e eu chegando ao fim."

Não é portanto à toa que tanto a canção quanto seus compositores se tornaram emblemáticos do estilo de sua época. Boêmio, homem da noite, amante das ruas e das madrugadas do Rio e de São Paulo, Antônio Maria como jornalista assinou as primeiras colunas individuais brasileiras que tratavam simultaneamente de todos os assuntos, sobretudo da noite e do bem comer. Maria, espírito crítico, um intelectual, produziria crônicas e poemas memoráveis nos quais a observação amargo-irônica do cotidiano era a constante fonte de inspiração:

- “Na vida a gente ama vinte vezes; uma por inexperiência e dezenove por castigo" ou "A única vantagem de morar sozinho é poder ir ao banheiro e deixar a porta aberta". Produtor dos primeiros programas de televisão e dos melhores shows humorísticos na antiga Rádio Mayrink Veiga, Maria criou músicas que marcariam a fundo a década de 1950, como "Manhã de Carnaval" (para o filme Orfeu Negro, 1959, com Luiz Bonfá), "Se eu morresse amanhã de manhã" e "Valsa de uma cidade", com Ismael Neto.

Transcreve-se, abaixo, uma das mais belas composições de Antônio Maria: o Frevo no. 1 do Recife. Esta música foi composta quando ele morava no Rio de Janeiro, com as lembranças saudosas do Recife de sua juventude, relembrando nomes lendários do carnaval pernambucano, como “Walfrido Cebola” “Colaço” entre outros.

Ô Ô saudade / Saudade tão grande / Saudade que eu sinto

Do Clube das Pás, do Vassouras / Passistas traçando tesouras

Das ruas repletas de lá/Batidas de bombos são maracatus retardados

Chegam da cidade cansados  / Com seus estandartes no ar.

Que adianta se o Recife está longe / E a saudade é tão grande

Que eu até me embaraço / Parece que eu vejo Walfrido Cebola no passo/ Haroldo, Mathias, Colaço/ Recife está dentro de mim.

 O parceiro e amigo Vinícius de Moraes, entre outras coisas, escreveria o seguinte no prefácio do livro O Jornal de Antônio Maria, cuja edição foi censurada e sustada pelos militares:

[...] Às vezes eu fico pensando. Não sei se você gostaria de estar vivo agora, meu Maria, depois de 1964. Tudo piorou muito, o Governo, o caráter, a música, perdeu-se aquela criatividade boa e gratuita da década de 50. Em resumo, amigo Maria, não se perdeu a música; perdeu-se a sua dignidade.



CONTINUA EM MEMÓRIA MUSICAL.

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